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  • Marcelo Vieira Matias

A mudança de cultura e a formação de sintomas psíquicos!


Laboratório de Saúde Mental e Psicologia Clínica Social

Departamento de Psicologia Clínica - IPUSP

Anais da V I Jornada APOIAR: SAÚDE MENTAL E VIOLÊNCIA: CONTRIBUIÇÕES NO CAMPO DA PSICOLOGIA CLÍNICA SOCIAL

São Paulo, 14 de novembro de 2008

Ana Angélica Roncolato;

Leila Salomão de La Plata Cury Tardivo;

Carolina Yuubi Yabase;

Marcelo Vieira Matias;

Julia Vasques;

Silvia Beier Hasse








RESUMO

A cultura tem um papel fundamental na formação da identidade dos indivíduos, sendo que a mudança de uma cultura para outra pode ser considerada um fator estressante, podendo vir a desencadear sintomas psíquicos mais graves. O objetivo do artigo é discutir a influência da mudança de cultura na formação de sintomas psíquicos a partir de atendimentos realizados em uma instituição psiquiátrica da cidade de São Paulo (SP), como atividades de estágio da disciplina de psicopatologia do curso de graduação em psicologia da Universidade de São Paulo.

Palavras-chave: cultura; formação de sintomas; psicopatologia.


A CULTURA E A FORMAÇÃO DE SINTOMAS


A cultura tem um papel fundamental na formação da identidade dos indivíduos. Ela pode ser considerada uma configuração de imagens e de outros elementos simbólicos desenvolvidos e aceitos pelos membros de uma sociedade ou grupo social para, individualmente, funcionar como orientação no comportamento, e, para o grupo, servir de matriz comunicacional que tende a coordenar e sancionar os comportamentos. (HUGHES, 1992, apud ASSUMPÇÃO Jr, 1999).

A cultura influencia tanto comportamentos como os processos cognitivos. Considerando a criança um ser que se desenvolve a partir de aspectos genéticos e socioculturais, Assumpção Jr (1999) coloca que a relação da criança com o mundo que a cerca será permeada por significados pessoais e sociais que irão constituir sua identidade. Os valores culturais enfatizam o que é essencial em determinados grupos, vinculando a auto-estima e a responsabilidade de decisão do indivíduo para que ele escolha o caminho previamente determinado. Se a cultura adquire esse valor nas escolhas do indivíduo, pode-se produzir um acobertamento do sentido real e individual do que é encontrado, sendo esse acobertamento influenciado pela cultura (ASSUMPÇÃO Jr, 1999).

Pensando-se no valor que adquire na constituição do indivíduo, observa-se que a mudança de uma cultura para outra pode ser considerada um fator estressante, podendo vir a desencadear sintomas psíquicos mais graves. As migrações internacionais foram incrementadas a partir do desenvolvimento do sistema de transporte e das telecomunicações, que ofereceram maior mobilidade às pessoas em todo mundo. Atualmente milhões de pessoas vivem fora do país de origem. Pode-se afirmar que o século XXI é marcado pelo crescimento intenso das migrações, incluindo como fatores a pobreza e a busca por melhores condições de vida. Esses indicativos podem ser observados na clínica psicológica em que a busca de indivíduos migrantes em situações de conflito é grande. O objetivo deste artigo é discutir a influência da mudança de cultura na formação de sintomas psíquicos a partir de atendimentos realizados em uma instituição psiquiátrica da cidade de São Paulo (SP), como atividades de estágio da disciplina de psicopatologia do curso de graduação em psicologia da Universidade de São Paulo.

Parkes (1971 apud Helman, 1994) aponta que as transições psicossociais mais propícias ao estresse são aquelas que produzem efeitos prolongados, que ocorrem num período curto de tempo e que afetam grande parte dos pressupostos individuais que as pessoas portam sobre seu mundo. Mudanças, como as migrações, envolvem muitos aspectos relativos ao espaço vital do indivíduo, bem como relações sociais, status profissional, segurança, problemas de moradia, tornando o indivíduo mais propenso à resposta ao estresse. O autor aponta que a cultura pode tanto proteger o indivíduo quanto torná-lo mais vulnerável ao meio. Determinadas crenças, valores e práticas culturais podem aumentar o número de fatores estressantes aos quais o indivíduo se expõe. Cada sociedade possui os seus valores e os indivíduos tentam atingir as metas definidas, os níveis de prestígio e padrões de comportamento que o grupo cultural espera de seus membros. A emigração de uma cultura para outra é uma experiência estressante que envolve rupturas importantes, obrigando o imigrante a enfrentar o isolamento, desamparo, sensação de insegurança e um bombardeio de estímulos incompreensíveis. Além de ter deixado família, amigos e o lugar que conhecia, grande parte de seus pressupostos sobre o mundo não tem validade. Enquanto que determinados valores culturais do emigrante podem atuar como proteção contra o estresse – como a valorização da união familiar – a experiência da emigração geralmente significa uma profunda transição psicossocial, podendo assemelhar-se em alguns casos ao luto ou à deficiência (HELMAN, 1994).

Para viver em sociedade, o homem deve reprimir parte do seu desejo: aquilo que não se ajusta às normas e interdições delimitadas pela cultura. Esse sacrifício só pode ser suportado uma vez que o sujeito se prende a certas fantasias, construções do inconsciente que substituem o reprimido. Estas fantasias são um importante motor para a formação de sintomas, dentro da própria cultura (MONTEIRO, 2000). Embora a cultura proteja o ser humano na sua disputa com a natureza, ela também estressa, causando conflitos, frustrações no indivíduo. Por outro lado, permite ao homem que alcance sua individualidade, além de fornecer a sensação de inserção no meio social através de seus valores e hábitos compartilhados e sua história única de vida, associada à história mais ampla da sociedade em questão. Esse sentimento de pertencer a uma cultura, de fazer parte, é importante, pois permite ao homem uma sensação de eternidade e continuidade, por fazer parte deste todo que continuará independente de si mesmo. Pensando nessa perspectiva, a ruptura num contexto de mudança cultural, pode gerar transtornos e o surgimento de novos conflitos, por não mais pertencer ao seu meio de origem e por estar se inserindo em um novo ambiente no qual não possui história e não está inserida à priori.

Na Classificação Internacional de Doenças (CID 10), o “Transtorno de adaptação” (F 43.2) está descrito como sendo um “estado de sofrimento e de perturbação emocional subjetivos, que entravam usualmente o funcionamento e o desempenho sociais, ocorrendo no curso de um período de adaptação a uma mudança existencial importante ou a um acontecimento estressante.” O fator de "stress" pode afetar a integridade do ambiente social do sujeito (luto, experiências de separação) ou seu sistema global de suporte social e de valor social (imigração, estado de refugiado); ou ainda representado por uma etapa da vida ou por uma crise do desenvolvimento (escolarização, nascimento de um filho, derrota em atingir um objetivo pessoal importante, aposentadoria). A predisposição e a vulnerabilidade individuais desempenham um papel importante na ocorrência e na sintomatologia de um transtorno de adaptação; admite-se, contudo, que o transtorno não teria ocorrido na ausência do fator de "stress" considerado.

As manifestações, variáveis, compreendem: humor depressivo, ansiedade, inquietude (ou uma combinação dos precedentes), sentimento de incapacidade de enfrentar, fazer projetos ou a continuar na situação atual, assim como certa alteração do funcionamento cotidiano. Transtornos de conduta podem estar associados, em particular adolescentes. A característica essencial deste transtorno pode consistir de uma reação depressiva, ou de uma outra perturbação das emoções e das condutas, de curta ou longa duração. Guimaraes e Celes (2007) afirmam que a subjetividade humana não pode ser concebida fora da sociedade na qual se desenvolve. Os autores apontam que Freud escreveu sobre cultura e sociedade em diversos textos e que o processo fundamental para a inserção do homem na cultura é a identificação. O indivíduo é inevitavelmente influenciado pelo grupo, a vida grupal produz alterações na vida psíquica. Essas alterações podem ser expressas através de sintomas como, por exemplo, a intensificação da emoção e a redução da capacidade intelectual. Além disso, na dinâmica grupal, verificam-se quadros de regressão da atividade psíquica, como se pode observar em crianças. Para Freud, a formação da relação grupal, ou a condição de um indivíduo se vincular a um grupo, não encontra explicação na existência de um instinto social. Ele descarta a idéia de que uma pulsão social primária seria responsável pela constituição de grupos, rejeitando qualquer explicação de cunho natural. Assim, o psicanalista esclarece os mecanismos pelos quais o homem se encontra em situação grupal e investiga (a) a influência do grupo na vida mental do sujeito (ou seja, a interferência e a importância que o grupo tem na constituição psíquica) e (b) a natureza da alteração mental que o grupo força no indivíduo (GUIMARAES e CELES, 2007). Essa pressão grupal pode gerar traumas no indivíduo.

Fulgêncio (2004) discute a questão de trauma em Freud e Winnicott, colocando que, para Freud, a noção de trauma envolve a existência de um indivíduo amadurecido, ou seja, exige a presença de uma unidade que reconhece em seu interior uma excitação que é vivida como algo a ser eliminado; vivida como um conflito entre desejos de uma mesma unidade, desejos irreconciliáveis; mais ainda, esse indivíduo já precisa estar maduro para estabelecer relações com objetos externos a ele (objetos por meio dos quais as intensidades vividas podem encontrar seu fim, a eliminação da tensão).

Já para Winnicott, o trauma representaria uma ruptura na linha da vida. Trata-se, para ele, de um acontecimento que diz respeito à preservação e continuidade do si mesmo numa relação interhumana. Winnicott concebia o trauma em termos relacionais, caracterizando-o não pelas intensidades energéticas, mas sim pela significação que determinado tipo de relação inter-humana teria em termos da continuidade do sujeito e da confiabilidade no ambiente. Ao considerar o trauma nessa outra perspectiva das relações inter-humanas e do amadurecimento pessoal, tanto na saúde quanto na patologia, Winnicott também recoloca o problema clínico do tratamento das pessoas que sofreram ou sofrerão traumas (FULGENCIO, 2004).

A partir do atendimento de Fernanda (nome fictício), paciente hospitalizada em uma instituição psiquiátrica na cidade de São Paulo, pode-se pensar nas questões previamente levantadas. Fernanda foi atendida pelos estagiários da disciplina de psicopatologia juntamente com a monitora. Os atendimentos foram realizados de acordo com o modelo de consultas terapêuticas de Winnicott (1984). O autor aponta que além da função diagnóstica, as primeiras entrevistas possuem um grande valor terapêutico. Quando possui uma visão mais objetiva do terapeuta, o paciente comparece mais disposto, trazendo material relativamente não-defendido do que trará nas sessões subseqüentes, possibilitando ao psicoterapeuta um espaço maior de ação e intervenção. Winnicott coloca que o principal objetivo da consulta terapêutica é oferecer um setting humano a partir da postura diferenciada do terapeuta, reforçando a importância da capacidade de holding do terapeuta, de empatia, esperando e dando espaço para o paciente, mostrando-se humano, mas também fazendo uso de técnicas interpretativas quando julgar necessário ao caso (WINNICOTT, 1984).

Fernanda deu entrada na instituição, por ter tido uma crise, o que denominava “paranóia” e foi encaminhada para internação. A paciente tinha idéias persecutórias com pessoas no seu trabalho e na residência que estava morando e relatava, ainda, uma situação em que ficara andando por uma avenida pela madrugada procurando uma determinada pessoa do trabalho. Neste episódio, envolveu-se com pessoas estranhas que chegaram a roubá-la. Fernanda é de nacionalidade brasileira, mas a partir dos três meses de idade passou a viver nos Estados Unidos com os pais. Durante os atendimentos, contou a respeito de sua família. Sobre o pai, disse que era violento, que torturava verbalmente ao longo de sua vida tanto a esposa quanto os filhos, havendo violência física contra a mãe em algumas ocasiões. Ela possuía um bom relacionamento com a mãe, que se responsabilizava por defendê-la do pai em muitos momentos. Os pais já faleceram e ela demonstra um grande ressentimento, principalmente, pela morte da mãe.

Atualmente, relata a pouca proximidade com o irmão e tios de quem, segundo ela, não pode esperar ajuda. Assim, ela relata que aprendeu a defender-se sozinha e a não esperar ajuda do outro. Aos 52 dois anos, Fernanda veio para o Brasil em função de conflitos pessoais e financeiros. Após o falecimento da mãe, já não conseguia contar com seu irmão e tios. Os sintomas surgiram logo no início de sua chegada ao Brasil: quando ouvia pessoas ao seu redor conversando, ela dizia ter a impressão de que estavam comentando a seu respeito de uma forma pejorativa, sempre relacionada à questão dela ser estrangeira chamando-a de “gringa, loira”. A própria paciente levantou a hipótese de sentir essa perseguição pelo fato de não saber português. Inclusive, relatou que recebeu uma proposta de trabalho na Inglaterra e que lá seus sintomas persecutórios poderiam cessar, pois sua língua seria compreendida. A paciente não apresentava transtornos de linguagem, o discurso era articulado e mostrava coerência, mas tinha, em alguns momentos, dificuldade em falar e entender o português. Apesar disso, a comunicação fluiu normalmente, pois a maioria dos integrantes do grupo falava inglês e a paciente se sentia compreendida, mesmo nos momentos em que conseguia se expressar somente em sua língua-mãe. Conforme se passaram as consultas terapêuticas, ao relatar as situações que havia vivenciado, a paciente já demonstrava maior senso crítico, percebendo que não se tratava de episódios “normais”.

A vinda ao Brasil pode indicar uma fuga da situação de uma crise financeira e familiar que estava enfrentando nos Estados Unidos. No entanto, não contava com o choque cultural, advindo das dificuldades de adaptação lingüística e de costumes. Esta dificuldade de entender os demais, e de ser entendida, pode ter se constituído num fator estressante que desencadeou os seus sintomas.

Pode-se perceber, dessa forma, que os sintomas apresentados por ela estavam diretamente ligados ao fato de ter deixado sua cultura e se inserido em um novo contexto que lhe pareceu estranho e pouco acolhedor. Fernanda encontrou no grupo de estagiários uma escuta diferenciada. Em muitos momentos se emocionava, relatava as situações vividas em inglês e o fato de ser compreendida pelo grupo lhe foi muito confortante. Com o vínculo estabelecido, compartilhou suas angústias, seus medos e foram realizadas intervenções circunscritas que fizeram muito sentido para ela. Ao receber a alta hospitalar, a paciente foi encaminhada para outro serviço da USP – APOIAR – que é um projeto inserido no Laboratório de Saúde Mental e Psicologia Clínica Social do Instituto de Psicologia da USP.



CONSIDERAÇÕES FINAIS

A partir do caso, pode-se pensar que a mudança cultural da paciente pode estar relacionada aos sintomas que a mesma apresentou. Percebeu-se que ela possuía um histórico familiar complicado, com dificuldades acentuadas no relacionamento com o pai, o que ela aprendeu a lidar ao longo de sua vida guardando para si suas mágoas e buscando formas de continuar.

Dessa forma, embora a diferença cultural possa ter tido alguma relação com a formação dos sintomas, possivelmente não tenham sido a causa. Fernanda atribuía seus sintomas ao choque cultural, mas é possível se pensar que esta foi a saída encontrada por ela. A partir de sua história, observou-se que ela sempre guardava tudo para si e seguia em frente, sendo difícil para ela sentir o sofrimento diante das situações difíceis.

A mudança de cultura pode ter afetado parte de seus pressupostos individuais, desencadeando a crise. É importante colocar, ainda, que a experiência de realização de consultas terapêuticas em hospital psiquiátrico mostrou-se como um enquadre apropriado, considerando a questão de que as internações têm pequena duração e nem sempre oferecem espaços como este aos pacientes. Possibilitando um ambiente de holding, o paciente se sente acolhido em suas angústias e consegue pensar em alternativas para a sua vida após internação. Neste caso apresentado, o grande diferencial foi o fato de que, em muitos momentos, a paciente precisou comunicar-se em sua língua mãe, o inglês, para expressar seus sentimentos e foi compreendida pelo grupo, sendo, dessa forma, extremamente terapêutico.


REFERÊNCIAS

ASSUMPÇÃO Jr., F. B. Identidade e cultura em psiquiatria da infância. Infanto – Revista de Neuropsiquiatria da Infância e Adolescência. 7(1): 32-35, 1999.

CELES, L. A. M.; GUIMARAES, V. C. O Psíquico e o Social numa Perspectiva Metapsicológica: O Conceito de Identificação em Freud. Psicologia: Teoria e Pesquisa Jul-Set 2007, Vol. 23 n. 3, pp. 341-346.

FULGENCIO, Leopoldo. A noção de trauma em Freud e Winnicott. Natureza Humana 6(2): 255- 270. Jul.- dez. 2004.

HELMAN, C.G. Cultura, Saúde e doença. 2ª Ed. Porto Alegre: Artes Médicas, 1994. MONTEIRO, Dalva de Andrade. A função paterna e a cultura. Trabalho apresentado na XII Jornada do Círculo Psicanalítico da Bahia, novembro/2000.

ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DE SAÚDE. OMS. Manual de classificação estatística internacional de doenças e problemas relacionados à saúde. São Paulo: Centro da OMS para classificação de doenças em português- USP, 1995.

WINNICOTT, D. W. Consultas Terapêuticas em Psiquiatria Infantil. Rio de Janeiro: Imago, 1984.

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