O mundo atual, conectado, globalizado, repleto de transformações intensas e absolutamente disruptivas, tem imprimido no ser humano moderno um grande conflito: se de um lado as possibilidades de experiências de vida se ampliou significativamente, como as diversas novas profissões que aparecerem a cada dia, o acesso à cultura mundial, a troca de informações entre pessoas em localidades distantes, entre outras experiências, do outro lado os desafios pessoais do ser humano moderno também conectado e globalizado parece trazer muito sofrimento e tensão, haja vista a Pandemia imprimida pelo aparecimento do vírus COVID-19.
Para explicar esse mundo em que vivemos, o termo VUCA (volátil, incerto, complexo e ambíguo), cunhado nos anos 90 no ambiente militar americano tem sido amplamente empregado em outros contextos.
O mundo é VOLÁTIL (volatility), uma vez que a velocidade das mudanças é extrema. A novidade de hoje de manhã já perde força no final do dia. Uma informação importante em uma semana, já não é tão relevante na outra. E essa natureza volúvel imprime desafios e oportunidades que exigem energia para acompanhar.
O mundo é INCERTO (uncertainty). O que poderíamos afirmar com mais segurança em décadas passadas já não podemos agora. Pouca coisa em nossa sociedade é previsível e padrões de sucesso são destruídos em segundos. Sendo assim, as crenças e certezas irrevogáveis acabam por impedir a assimilação da realidade e tem sido cada vez menos bem recebida.
O mundo é COMPLEXO (complexity). As redes de relacionamento são mais amplas. Decisões tomadas em regiões distantes impactam real time países do outro lado do mundo.
O mundo é AMBÍGUO (ambiguity). A realidade é mais embaçada, mas cinzenta, permite muitas interpretações e até entendimentos contrários do mesmo fato. Haja vista, por exemplo, o sentimento polarizado no cenário político brasileiro. As decisões que são tomadas impactam diversos pontos de nossas vidas e exige-se uma habilidade mais apurada de ver o todo. Não há clareza ao analisar contextos complexos.
Dessa forma, ao ser humano moderno, é vital fazer escolhas, absorver as consequências e estar especialmente aberto a conviver com os erros. Naturalmente, viver em um mundo VUCA é praticamente viver em conflito com as polaridades internas de cada um, onde cada decisão vem com o luto de algo que deixou de ser escolhido. Um mundo em que as comparações que antigamente se restringiam ao ambiente familiar (“seu irmão é mais que você”, “seu primo é melhor que você”) ganham contexto globais e hiperbolizados pelas plataformas digitais e a batalha interna de cada indivíduo para se encaixar em um grupo/comunidade/sociedade gera cada vez mais medo, angústia e terror.
[...] As expectativas neuróticas da sociedade levam o indivíduo a se dissociar ainda mais da sua própria natureza. O primeiro e último problema do indivíduo é integrar-se internamente e ainda assim, ser aceito pela sociedade [...] Para ser aceito pela sociedade o sujeito responde com um conjunto de respostas fixas. Ele chega a estas respostas ‘computando’ o que considera ser a reação apropriada. A fim de compactuar com os ‘deverias’ da sociedade, o indivíduo aprende a ignorar seus próprios sentimentos, desejos e emoções. Então ele também se dissocia de ser parte integrante da natureza. Paradoxalmente, quanto mais a sociedade exige que o indivíduo corresponda aos seus conceitos e ideias, menos eficientemente ele consegue funcionar. (PERLS in STEVENS, 1977 p.20).
Com esse contexto, é comum nos depararmos com o seguinte dilema: com me tornar o que desejo ser? Para colocar luz nesse conflito, a Gestal-terapia lança mão do seguinte conceito: o paradoxo da mudança. Perls, um dos teóricos mais influentes de nossa abordagem não faz uma definição clara de mudança, contudo ela é referenciada em diversos textos seus. Oficialmente, em 1970 Arnold Beisser apresenta a Teoria Paradoxal da Mudança em texto descrito por Fagan e Sheperd:
[...] a mudança ocorre quando uma pessoa se torna o que é, não quando tenta converter-se no que não é. A mudança não ocorre através de uma tentativa coerciva por parte do indivíduo ou de uma outra pessoa para mudá-lo, mas acontece se dedicarmos tempo e esforço a ser o que somos – a estarmos plenamente investidos em nossas posições correntes. (BEISSER in FAGAN e SHEPHERD 1975, p.110).
Também encontramos definições sobre mudança em TELLEGEN (1984), CARDELLA (2002):
[...] mudar é tornar-se o que eu já é; o árido é fértil; não tentar dominar uma dor pela supressão, mas acompanhá-la atentamente, é um meio para não ser dominado por ela; permanecendo no vazio, encontra-se o pleno; o momento do caos prenuncia uma nova ordenação desde que não se tente impor ordem. (TELLEGEN, 1984, p.42).
Para a Gestalt-terapia, a pessoa é capaz de crescer tornando-se cada vez mais o que é, e não quando tenta ser o que não é. [...] é preciso aceitar afetos, pensamentos e desejos, mesmo que sejam desagradáveis e dolorosos, para que a mudança ocorra [...] O homem está em continuo processo de crescimento, a vida é o movimento, e transitamos entre polaridades que formam a nossa totalidade. (CARDELLA, 2002, p.42).
Contudo, a compreensão de que a mudança vem quando assumimos quem somos de verdade não é a garantia da mudança. Uma coisa é compreender o fenômeno, outra bem diferente é atuar nele. Quais recursos então podem nos auxiliar a nos integrar, a nos tornarmos o que realmente somos?
Um dos caminhos está mais na integração de nossas polaridades, ao invés de fortalecermos a separação entre elas, por meio da ampliação de nossa awareness:
[...] a pessoa que se aceita desenvolve (reencontra?) o grau de autoconfiança e auto-estima que a caracteriza como um ser saudável, independente de eventuais crises ou de papéis que possa ter necessidade de desempenhar para melhor sobreviver em ambientes desfavoráveis. [...] ouve a todos com a tranqüilidade e a serenidade de quem sabe o que quer e de que necessita. [...] é o atingimento do estado de autoconfiança e auto-estima indispensáveis para o nosso sentimento de paz e segurança que constitui o suporte existencial básico de que necessitamos para acompanhar o fluxo dos eventos externos e internos, que incessantemente nos desafiam e podem nos desestabilizar. (RIBEIRO, 1998, p. 60).
Utilizar-se da criatividade (que traz intencionalidade por definição) é condição básica para a mudança. A mudança a ser realizada exige novas aptidões para que seja transformadora. O papel ativo do indivíduo é condição sine qua non nesse processo. Esse conceito, a Gestalt Terapia nomeia como Ajustamento Criativo:
Pode-se descrever o ajustamento criativo como o processo pelo qual a pessoa mantém sua sobrevivência e seu crescimento, operando seu meio sem cessar ativa e responsavelmente, provendo seu próprio desenvolvimento e suas necessidades psicossociais. (D’ACRI, LIMA, ORGLER, 2007, p. 21),
Para CARDELLA (2002), no processo de auto – regulação organísmica o novo não pode ser aceito passivamente, pois deve ser assimilado. Assim, é necessário haver ajustamento e criatividade, que são polares e permitem a assimilação do que é nutritivo de modo que gere crescimento.
Segundo YONTEF (1998), o ajustamento criativo é o relacionamento entre o indivíduo e seu meio, o indivíduo assume a responsabilidade em reconhecer e conduzir um bom modo de se viver. O ajustamento criativo é parte fundamental para a auto-regulação, possibilita a pessoa manter sua sobrevivência e seu crescimento.
Sobretudo no mundo VUCA, o ajustamento criativo é um recurso crucial para a sobrevivência saudável. Ele refere-se à formação de novas configurações pessoais com a entrada de novos elementos a partir da experiência do contato. Se ajustar criativamente é estar aberto para as novas possibilidades.
E justamente por ter intencionalidade exige energia a mais do que os ajustamentos não criativos (geridos pelo próprio corpo, como as funções hormonais). Sendo assim, se entendermos o ajustamento criativo como uma função que pode estar ativa e inativa, a depender do momento, que pode se amortecer ou performar plenamente, e se considerarmos que o mundo VUCA exige de nós a condição de renovarmos repetitivamente e constantemente, podemos entender o ajustamento criativo como um recurso ainda mais vital em nossos dias para que possamos lutar contra as prisões, as dispersões e as divisões que tanto assola o homem moderno.
Ajustar-se criativamente, segundo CARDELLA (2013) é viver a vida como fluxo, na interação com os outros e acontecimentos, apropriando-se e criando recursos, assumindo a co-criação do próprio destino - pois, se não podemos determinar integralmente o que nos acontece, somos livres para escolher e responsáveis por como vamos viver a experiências, ofertando ou não a elas um sentido. E assim, ao nos desprendermos dos deverias e conseguirmos nos encontrar com o nosso dinâmico ser, podemos viver uma maior integração.
Bibliografia
CARDELLA, B. H. P. A construção do psicoterapeuta: uma abordagem gestáltica. São Paulo: Summus, 2002.
CARDELLA, B. H. P. Ajustamento criativo e hierarquia de valores ou necessidades. In: Frazão L .M.; Fukumitsu K. O. (orgs. Gestalt Terapia: conceitos fundamentais. São Paulo: Summus, 2013
D’ACRI, G. LIMA, P. ORGLER, S. Dicionário de gestalt-terapia: “gestaltês”. São Paulo: Summus, 2007.
FAGAN, J.; SHEPHERD, I. (orgs). Gestalt-terapia: Teoria, técnicas e aplicações. 2ª Ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1975.
PERLS, F. S.; HEFFERLINE, R.; GOODMAN, P. Gestalt-terapia. 2ª Ed. São Paulo: Summus, 1997
RIBEIRO, W. Existência essência: desafios teóricos e práticos das terapias relacionais. São Paulo, Summus, 1998.
STEVENS, J. O. (org). Isto é Gestalt. 3ª Ed. São Paulo: Summus, 1977.
TELLEGEN, T. A. Gestalt e grupos: uma perspectiva sistêmica. 4ª Ed. São Paulo: Summus, 1984.
YONTEF, G.M. Processo, diálogo e awareness: ensaios em gestalt-terapia. São Paulo: Summus, 1998.
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